Alegoria de uma Contemplação
Há cinco pombas que se equilibram na precariedade do ramo sob o vento de inverno. Gerações de pombas tomaram o mesmo ou outros ramos para si perante a indiferença da árvore.
Construiu-se um prédio perto da árvore e uma avenida que a isola num canteiro central. Os pássaros que se equilibram no ramo já não são os mesmos. A árvore permanece após vários invernos.
Instalou-se, entretanto, o poste, coluna que diverge para duas lâmpadas que atenuam a escuridão das noites em ambas as vias, engodo para insetos que alimentam morcegos que não conhecem pombas.
Ao raiar dos dias poisam no poste as pombas que desconhecem morcegos. Gerações de animais que se libertaram da tirania da gravidade, afastados por milhões de anos de evolução, coabitantes de milhares de anos do mesmo espaço em turnos diferenciados.
O trânsito na avenida intensifica-se de dia e escasseia de noite. Não há pombas na noite. Não há morcegos no dia.
A árvore vive. O prédio inerte é habitado e nem vive nem morre, acorda e adormece ao ritmo dos inquilinos.
Poucos homens repararam no ramo que sustenta as pombas. Poucos homens atentaram no voo dos morcegos. Algum homem há-de mandar abater a árvore, doente ou velha. Algum homem reclamará quando uma luz do poste se extinguir. Algum homem substituirá a lâmpada. Algum homem mandará plantar uma nova árvore.
Chegará o dia em que o prédio será escombros e o poste tombará como todas as árvores.
Apenas um homem testemunhou as cinco pombas equilibradas na precariedade do ramo sob o vento de inverno. Nenhuma pomba deu por isso. Todos os morcegos dormiam. A árvore permaneceu indiferente.
Diferentes luzes são engodo para diferentes homens.
Não revelo as coordenadas dos acontecimentos.
Nada disto importa senão a mim.
Equilibro-me na precariedade do ramo sob o vento de inverno, mas a musculatura das asas clama sempre pela fugacidade do voo.
[ © Paulo Ricardo Moreira ] In "AINDA DO SER"