Os Homens-sempre-nus

06-06-2017

Hoje o dia amanheceu, límpido e transparente, em tela azul de infinito. Agarrados à epiderme da Terra, os homens amanhecem no privilégio da vida! Alguns homens são límpidos e transparentes em todos os seus amanheceres. As suas consciências são dias infindos de luz, sem nuvens de mágoas e rancores, sem sombras de invejas, sem vendavais de desesperança, sem tempestades de raiva ou ódio. Carregam o próprio Sol dentro de si!

Invejo que haja tais homens que detêm o domínio absoluto do tempo, que saltitam entre as estações, indiferentes à meteorologia. Tais homens não necessitam de roupas quentes ou ligeiras para encobrir preconceitos, tampouco de cremes solares ou de guarda-chuvas para protecção da alma. Tais homens transcendem o corpo que habitam e estão sempre nus! Tais homens vivem entre nós e são indistintos observadores da dor. Camuflam-se para não serem detectados. Guardiões dos segredos do coração, utilizam o mimetismo para parecerem comuns, por isso têm casas, rotinas e trabalhos. Diz-se que comunicam entre si por códigos e sinais, como os membros da maçonaria, mas são muito mais discretos e dispensam adornos. E não reúnem secretamente, apenas existem!

Tais homens sabem que são homens, que os seus corpos são feitos da mesma matéria e que possuem as mesmas extremidades e características dos outros. E estão sujeitos às mesmas doenças, excepto as do espírito. É incumbência dos corpos humanos regular a sua homeotermia para manter a própria vida, em intervalo restrito de muito poucos graus. Diferentemente dos restantes homens, porém, estes autorregulam a temperatura da alma e são, por isso, excepcionais, tanto no sentido sobre valorativo, como no de excepção. A sua principal missão, entre nós, é ensinar-nos que isso é possível. Consta que o fazem delicadamente e sem pressas, através de um tipo de contaminação não viral e que exige hospedeiros permeáveis ao amor e aos valores. Nada mais sei sobre esses homens-sempre-nus, senão que existem!

Por vezes, quando o dia amanhece, límpido e transparente, em tela azul de infinito, consigo autorregular-me. Então, sento-me só numa esplanada e escrevo, com os outros homens vestidos, ignorantes de que, nesse momento, desnudo-me. Talvez faça isso apenas porque sei que os homens-sempre-nus existem. E, talvez, haja mesmo algum, agora, ao meu lado, a rir-se por dentro da minha acção efémera. Um estranho sorri-me, ao que lhe devolvo um sorriso. E observo, entretanto, as crianças que brincam na praça e deduzo: Todas as crianças pertencem à tribo dos pequeninos homens-sempre-nus! Mas vestimo-nos e ensinamo-las a vestirem-se e travestirem-se. Não sei se os homens-sempre-nus são crianças grandes, mas tal como estes, também elas carregam o Sol por dentro!

Hoje o dia amanheceu, límpido e transparente, em tela azul de infinito. Agarrados à epiderme da Terra, os homens amanhecem no privilégio da vida! Poucos homens, os sempre-nus, são guardiões dos segredos do coração, serenos e tranquilos. Alguns, como eu, almejam, inquietos, essa conquista, turvados pelas próprias contradições que sempre os impedirão. E todos, todos os restantes, aproveitarão o dia, em serenidade e tranquilidade passageiras, com a certa previsão, do tempo e da alma, de que piores dias virão!

[ © Paulo Ricardo Moreira ] In "AINDA DO SER"   

© 2017 Paulo Ricardo Moreira
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